Sobre
Freud e suas mulheres, obra recém-lançada, As
mulheres de Freud propõe uma viagem histórica pelo universo feminino; o
criador da psicanálise e sua teoria são apresentados sob novos ângulos. A romancista
e escritora Lisa Appignanese e o professor de história e filosofia da ciência
da Universidade de Cambridge John Forrester, acadêmico que já publicou várias
obras psicanalíticas, uniram-se para investigar e narrar a trajetória das mulheres
que participaram da vida de Freud. Em uma obra de fôlego, a dupla revela o
impacto feminino no desenvolvimento das ideias relativas à feminilidade e ao
legado dessa produção intelectual para a cultura contemporânea. Em virtude das
diferentes áreas de especialização, pareceu aos autores que seria lógico
dividir o material de modo que Forrester tratasse das personagens que foram “descobertas”
pelo olhar de Freud: parentes, figuras
de sonhos, pacientes e suas ideias sobre feminilidade. Já Appignanese trataria
das primeiras analistas, tradutoras e escritoras próximas ao pensador.
Os
escritores reconhecem que o desafio era potencialmente infinito, uma vez que
tantas mulheres tiveram importância na história da psicanálise e o debate sobre
feminilidade nessa área vem se desenrolando até hoje. Decidimos limitar nossa
narrativa às personagens que tiveram contato direto e continuado com Freud. Em
consequência disso, não tratamos particularmente de Karen Horney ou Melanie
Klein, para citar apenas duas, embora elas figurem nas páginas do livro. Infelizmente,
a decisão de não incluir uma pensadora do porte de Klein, por exemplo, traz
problemas estruturais, que implicam a sensível perda do entendimento de toda
uma vertente do debate sobre a mulher. É inegável, porém, que As mulheres de Freud tem muitos pontos
positivos. Entre eles, está o fato de que ajuda o leitor a rever as acusações
de que o criador da psicanálise teria sido um misógino, um patriarca
conservador que via como principal função das mulheres servir à reprodução da
espécie. Os autores creem que uma das questões esclarecidas por essa pesquisa
foi que a concentração excessiva nos fracassos de Freud era, em si, uma maneira
de negar às mulheres que figuram na história da psicanálise seu lugar de
direito. Uma vez restituído este lugar, tanto Freud quanto a psicanálise
adquiriram um aspecto sutilmente diverso. E essa talvez seja uma das mais
importantes conclusões desse imenso trabalho de pesquisa histórica, que instiga
tantas discussões teóricas. A pesquisa reúne dados anteriormente esparsos e
revela de modo histórico-científico que muitas outras além de Salomé e da
princesa
Bonaparte
eram amigas e analistas ativas. Entre elas estão Ruth Marck Brunswick, Muriel
Gardiner, Eva Rosenfeld, Jeanne Lampl Groot, Hilda Doolittle e mais todo o
círculo de analistas da filha Anna Freud. No início do livro são apresentadas
as mulheres-chave da família de Freud: a mãe, a noiva que virou esposa e as
filhas. A segunda parte trata da colaboração das pacientes histéricas no
desenvolvimento da prática e teorias freudianas. Na etapa seguinte são focalizadas
as mulheres que se tornaram as primeiras analistas do círculo de Freud, como
Sabina Spieelrein, Lou Andreas-Salomé, Helene Deutch, Marie Bonaparte e Joan
Riviere. Num livro de 16 capítulos extensos, com rigoroso levantamento
bibliográfico, que revela um sério trabalho de pesquisa, alguns trechos
históricos são especialmente significativos e curiosos. É o caso de “Primeiras
amigas, primeiros casos, primeiras seguidoras” (cap. 6), no qual o leitor fica
sabendo, por exemplo, que o divã foi presente de uma paciente agradecida, por
volta de 1900. No capítulo 13, A amizade das mulheres”, é surpreendente
constatar o quanto as mulheres se desenvolveram dentro da psicanálise “o que
nos convida a rever a ideia do círculo de amigos formado apenas por homens
(como Carl Jung, Wilhelm Fliess, Alfred Adler, Karl Abraham) ao redor de uma
mesa para discussão psicanalítica, às quartas-feiras.
O
capítulo 15, “O debate sobre a mulher, com abordagem mais teórica, evoca as
figuras de Helene Deutch, Karen Horney e Melanie Klein para tratar da constituição
do feminino. Os autores apontam a importância de uma discussão correlata acerca
do peso atribuído aos fatores traumáticos (ambientais) ou constitutivos e de
disposição (hereditários), temas atuais não somente para a feminilidade, mas
também para todos os aspectos de constituição psíquica do sujeito. Para Freud,
o campo da psicanálise é o acidental, o traumático por natureza. Segundo ele, o
que fica de fora, o que permanece inexplicável, o que é temporariamente
atribuído à constituição, não é o mais importante, o mais fundamental, mas sim
o ponto no qual as explicações fracassam, o ponto em que a ciência emudece. Por
fim, somos surpreendidos pelo último capítulo, “Feminismo e psicanálise”, no
qual feministas ultrapassam a hostilidade visceral em relação a Freud, o que
torna possível evidenciar uma relação mais complexa que abarque novos
desdobramentos. Uma vez que as feministas perceberam a revolução sexual do
século XX como uma força positiva e libertadora, a associação de Freud com esse
movimento garantiu-lhe um lugar de respeito entre os antecessores dos
movimentos progressistas contemporâneos.
Marina Massi é psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de
São Paulo (SBPSP), doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e autora do
livro Vida de mulheres: cotidiano e
imaginário, Imago, 1992.
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